Ainda estou aqui – 2024
“Quem controla o presente, controla o passado”
A ditadura militar brasileira é um tema complexo de se tratar no Brasil, enquanto alguns, extasiados por fantasias e falsos ídolos que a mesma fabricou, numa alegação de “livrar” o Brasil do comunismo, que nada mais era do que qualquer coisa que fosse tratada como subversiva e imoral pelos militares (lembra alguma coisa nos dias atuais?), acham que foi uma boa coisa no Brasil, que as ruas eram mais seguras, que era só andar “na linha” (com muitas aspas) que não aconteceria nada e uma série de falácias, propagadas com o objetivo de alçar militares e seus seguidores como representantes da moral e dos bons costumes, seres que tiveram que fazer barbaridades pelo bem, sim, essa declaração é tão nojenta e incorreta como soa aqui
A narrativa mais clássica de qualquer governo anti democrático, é a desumanização dos opositores, quando uma população é capaz de ver um amigo, parente e vizinho como alguém que é prejudicial, só por não acreditar em algo que o governo quer que acredite, usando a máquina do estado para punir, perseguir e matar seus opositores, sem ligar para suas famílias, significa que um governo conseguiu de fato instaurar uma ditadura. Do outro lado, há a ferramenta do estudo da história, que investiga e trás a tona elementos do passado, afim de prevenir que coisas horrendas e erros da civilização humana, fazendo que sejam discutidos, repensados e punidos, negar a história ou tentar distorce la, é um perigo pra toda a sociedade, pois pode transformar atitudes perversas em atitudes aceitáveis, segundo o espectro de quem divulga informações falsas.
Nesse período obscuro do nosso país, ao logo dos anos 70, considerados os mais brutais dessa ditadura, com diversos opositores políticos, incluindo pessoas familiares e amigos dessas pessoas, foram submetidos aos diversos tipos de interrogatório e torturas, incluindo Rubens Paiva, o qual é “desaparecido” numa manhã de 1971, sob alegação de ajudar uma conspiração que havia assassinado um embaixador no Brasil, seu filho Marcelo escreve o livro “Ainda estou Aqui” de forma autobiográfica, escrevendo sobre os horrores que sua família passou durante o período. O filme em questão, baseado nesse livro, começa de uma forma que convida o telespectador para o ambiente da família, aconchegante e harmonioso, até jogar, de uma forma brutal, para os horrores da ditadura, após isso, discutindo a posteridade do que aconteceu e seu impacto na família de Rubens Paiva, aqui interpretado por Selton Melo, família essa que agora será capitaneada de forma exclusiva pela mãe, Eunice, interpretada de forma maestral por Fernanda Torres.
É muito interessante como o filme começa quase como um álbum de família, a fotografia granulada que emula a época que é filmada a princípio, do diretor de fotografia Adrian Teijido, aliada com a direção de arte de Carlos Conti, cria um ambiente colorido e convidativo, num roteiro escrito por Murilo Hauser e Heitor Lorega, que trabalha numa estrutura conhecida como “Slow Burn”, que traduzindo, é uma forma de tratar aquilo que chamamos de “momento incitante” que num roteiro, é uma situação que muda de forma total a narrativa, de forma lenta e aos poucos, colocando elementos de forma gradual, até que, de forma eminente, a narrativa muda, após o roteiro armar algumas coisas que antecedem essa mudança, dessa forma, o roteiro da dupla, aliado as direções de arte, fotografia e geral, essa com o grande Walter Salles, dono de sucessos do cinema nacional, como Central do Brasil, Abril Despedaçado e Diários de Motocicleta, criam um ambiente familiar que faz o público conhecer melhor os componentes dessa família, que a princípio tem membros extremamente carismáticos, com destaque para o Rubens de Selton Melo, que alterna de forma fascinante entre um pai de família dedicado e amoroso, para alguém que carrega um segredo que pode colocar em risco ele e sua família e Fernanda Torres, que carrega o filme, não que as outras performances sejam ruins, longe disso, considero que o elenco, está primoroso nesse filme, até participações curtas são bem impactantes (como a grande Fernanda Montenegro no final) mas Torres parece estar uma nota acima dos demais, tendo momentos que variam de um drama familiar, para um triller psicológico, é impressionante como o filme alterna entre gêneros, as vezes na mesma cena, com um trabalho muito bom de background, que são coisas que acontecem por detrás das cenas mostradas em tela, como se pequenas histórias fossem ambientadas num mesmo ambiente, juntando o quebra cabeça que a grande revelação do filme trás a tona.
A alternância temática é sentida também na fotografia, após a grande revelação, que de fato Rubens, ajuda, de uma certa forma, um grupo associado a diversos atentados naquela época, temos um filme que começou claro e bem iluminado, para uma estética mais sombria, com personagens sendo fotografados na penumbra e no contra luz, criando sombras e contrastes mais aparentes, isso aliado a dualidade de cores claras e escuras que os militares carregam no filme, quase como uma coloração binária, que caracteriza o tratamento que eles dão as pessoas aqui, ou você é aliado ou é inimigo, não existe meio termo, não existe sentimentos ou diálogo, o opositor, o inimigo do sistema é, segundo eles mesmos, alguém desmerecedor de existência, fadado a tortura e ao extermínio, por qualquer meios necessários, quem estuda o tema, vê o pior que a humanidade é capaz de fazer, aparada pela máquina do estado, uma entidade acima de nós, que, de forma anti democratica, tirou toda liberdade de expressão de uma nação, que nem já diria Alan More em Watchman, “Quem vigia os vigilantes?”, o que fazer quando uma organização que deveria nos proteger, é na verdade, o responsável pelo seu sofrimento?
Esse tema que o filme trata, com Eunice, Rubens e seus cinco filhos, sendo as grandes vítimas, um, uma vítima do sistema e os outros, que tiveram o sofrimento, de por longos anos, sequer saber o que aconteceu com a pessoa que mais amavam, sendo condenados a uma vida de incerteza e perseguição.
Ainda estou aqui é um dos melhores filmes que o cinema nacional nos entregou em muito tempo, todos os elementos técnicos funcionam em harmonia, para resgatar essa história, que mostra, de forma brutal e com ares de terror psicológico, o pior que a humanidade pode fazer, contrastada com uma mãe que precisa ser forte, num momento de crise e perseguição, quase como se fosse o simbolismo da busca pela liberdade, fazendo paralelos de como o povo brasileiro teve que esperar mais de 20 anos, para ter seus direitos e liberdades assegurados novamente, obras assim, nos mostram como não podemos, de forma alguma, permitir que esses direitos e a liberdade de expressão sejam nos tirados novamente.
Nota 10/10.
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